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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Laudato Sí: ruptura ou continuidade? um primeiro olhar



I – INTRODUÇÃO 

Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco demonstrou que iria trazer novidades para a vida da Igreja Católica. Muitas delas bem-vindas e necessárias, e algumas discutíveis, por assim dizer. Com certeza um dos momentos mais marcantes e decisivos do atual pontificado foi a publicação, pelo romano pontífice, da Carta Encíclica Laudato Sí, em 24 de maio de 2015, que posteriormente forneceu as justificativas para a convocação do Sínodo para a Amazônia. 

Na referida Encíclica, o Papa fez questão de desenvolver o problema ambiental, trazendo-o para o seio de pensamento católico, juntamente com outros temas que fazem parte da Doutrina Social da Igreja. Entretanto, mesmo com esta manifestação expressa e extensa do pontífice a respeito do tema, ainda há muitos católicos que se perguntam se é pertinente a um cristão discutir estes temas e envolver-se em ações concretas na pauta ambiental. Especialmente quando a CNBB pede que se plantem árvores no Dia de Finados em memória das vítimas da COVID/19, não é de estranhar que haja má-vontade com a nova roupagem verde que a Igreja católica assume com Francisco. 

Mas, gostemos ou não, a Encíclica está aí e é de se esperar que tanto o atual Papa quanto seus sucessores desenvolvam ainda mais a doutrina social da Igreja tendo apreço também pela chamada questão ambiental. A única alternativa diante desta provocação do pontífice é, portanto, deixar de lado as pré-concepções eventualmente existentes sobre o tema e se perguntar com sinceridade: afinal, é possível uma ecologia católica? É possível conceber um catolicismo ambientalista? 

Procurarei, nesta e em outras postagens, avançar na direção de respostas satisfatórias a estas perguntas. 



II - LAUDATO SÍ: COERÊNCIA COM O QUE O PAPA HAVIA ANUNCIADO 

Um dos pontos que causa estranheza, num primeiro momento, é que Francisco parece ter sido o primeiro Papa na história da Igreja a tratar da matéria. A própria mídia, seja secular, seja católica, gosta de vender a ideia de um papa das novidades que vem para quebrar protocolos e tirar a Igreja de seu atraso medieval, digamos assim. Não vamos aqui adentrar no mérito da questão. O fato é que, embora Francisco tenha sido o primeiro Papa a escrever uma encíclica inteira para tratar apenas da questão ambiental, não é esta a primeira vez que o tema é posto à reflexão dos fiéis por meio do Magistério do Sucessor de Pedro. 

Primeiramente, o próprio Papa Francisco, a 24 de novembro de 2013, quando foi apresentada ao mundo a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, já dava pistas de que pretendia dar ênfase especial à questão ambiental. A primeira referência ao tema aparece no número 65, em que o Papa cita o papel de mediação exercido pela Igreja junto à sociedade civil no auxílio de repetidos problemas sociais, entre os quais inclui aqueles relacionados ao meio ambiente: 

Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade, em muitos países – mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao âmbito da solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela serviu de medianeira na solução de problemas que afetam a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc [Evangelii Gaudium, nº 65]. 

Já bem mais à frente no documento, temos uma referência expressa, após tratar da defesa dos direitos dos seres humanos, particularmente o direito à vida das crianças ainda por nascer, o Papa alarga os horizontes de seu pensamento para englobar na necessidade de proteção todo o conjunto da Criação: 

Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afetem a nossa vida e a das gerações futuras [Evangelii Gaudium, nº 215]. 

Portanto, ninguém que lance um olhar global sobre o Magistério do Papa Francisco poderá se dizer surpreso com a redação de uma encíclica ambiental de sua parte. O que surpreende na verdade não é que Francisco tenha escrito uma encíclica sobre o tema, mas que tenha sido o primeiro Papa a fazê-lo, quando outros Papas já haviam realizado ensaios neste sentido. 



III - A QUESTÃO TRATADA POR OUTROS PAPAS 

De fato, ao analisar o início da Laudato Sí, somos confrontados com várias referências que o Papa Francisco faz aos seus antecessores, demonstrando como estes já haviam, na verdade, tratado também da questão ambiental em seus escritos para a Igreja. Portanto, o que o Papa Francisco fez não pode ser caracterizado propriamente como uma novidade, mas um desenvolvimento de uma temática que já havia sido abordada anteriormente, embora em menor amplitude, no ensino do Bispo de Roma. 

São Paulo VI, no início da década de 1970, abordou a questão na Carta Apostólica Octagesima Adveniens, na qual se fazia memória dos 80 anos da publicação da Rerum Novarum de Leão XIII, considerada por muitos a primeira Encíclica social da Igreja. S. Paulo VI, tratando de temas correlatos, chama atenção para dois fenômenos emergentes à época da redação da carta e que hoje estão no centro dos debates sociais de muitos países: a urbanização e a questão da degradação dos ambientes naturais: 

Um fenômeno que ressalta, atrai a nossa atenção, tanto nos países industrializados, como nas nações em vias de desenvolvimento: a urbanização. Após longos séculos, a civilização agrícola perdeu o seu vigor. Será que se dispensa, de resto, uma atenção suficiente ao acondicionamento e ao melhoramento da vida das populações rurais, cuja condição econômica inferior e, por vezes, miserável, provoca o êxodo em direção aos tristes amontoados dos subúrbios onde não as esperam nem trabalho nem alojamento? [S. Paulo VI. Carta Apostólica Octagesima Adveniens, nº 8]. 

E mais à frente no documento, vemos a citação expressa do perigo da destruição dos ambientes a ponto de colocar em risco a sobrevivência da humanidade: 

À medida que o horizonte do homem assim se modifica, a partir das imagens que se selecionam para ele, uma outra transformação começa a fazer-se sentir, conseqüência tão dramática quanto inesperada da atividade humana. De um momento para outro, o homem toma consciência dela: por motivo da exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação. Não só já o ambiente material se torna uma ameaça permanente, poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto; é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim, para o dia de amanhã, um ambiente global, que poderá tornar-se-lhe insuportável. Problema social de envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana. O cristão deve voltar-se para estas perspectivas novas, para assumir a responsabilidade, juntamente com os outros homens, por um destino, na realidade, já comum [S. Paulo VI. Carta Apostólica Octagesima Adveniens, nº 21]. 

Ou seja, pelo menos desde a década de 70 do século passado encontramos um Papa abordando a questão ambiental. Já se vão, portanto, ao menos 50 anos de tratativas sobre o tema. Portanto, pode-se dizer que a Igreja está atenta à questão ambiental desde o seu surgimento, pois também na década de 70 têm início os primeiros esforços das nações para discutir a questão. Se a questão pode, mesmo considerando a passagem de 50 anos, ser ainda considerada nova aos olhos da Igreja, é apenas porque a Igreja passou a se preocupar com o tema na mesma época em que ele surgiu na pauta das sociedades políticas, como aliás ocorre em todas as matérias da doutrina social da igreja: os problemas são abordados à luz do Evangelho à medida em que vão surgindo. 

Após São Paulo VI e o reinado de apenas 33 dias de João Paulo I, o santo João Paulo II também dedicou atenção ao tema durante o seu tempo à frente da Igreja. São muitas as vezes que o tema foi abordado por aquele Papa em documentos com valores distintos, com destaque para muitas catequeses proferidas em audiências gerais. Se falta a solenidade própria das Encíclicas, nem por isso estamos autorizados a pensar que aquele Papa em seu ensino considerado em sentido amplo, não considerava a questão ambiental como relevante para o nosso tempo. 

Quero destacar aqui o discurso daquele Papa na audiência geral de 17 de janeiro de 2001, na qual se encontram muitas afirmações ambientalistas de São João Paulo II a respeito do tema: 

No hino de laudes, agora proclamado (cf. Sl 148, 1-5), o Salmista convoca, chamando-as pelo seu nome, todas as criaturas. No alto, apresentam-se os anjos, o sol, lua, estrelas e céus; sobre a terra movem-se vinte e duas criaturas, tantas quantas são as letras do alfabeto hebraico, a indicar plenitude e totalidade. O fiel é como 'o pastor do ser', quer dizer, aquele que conduz para Deus todos os seres, convidando-os a entoar um "aleluia" de louvor. O Salmo introduz-nos como num templo cósmico que tem por abside os céus e por naves as regiões do mundo, em cujo interior o coro das criaturas canta a Deus [S. João Paulo II. Audiência Geral de 17/01/2001]. 

E ainda: 

Infelizmente, se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina. Sobretudo no nosso tempo, o homem devastou sem hesitações planícies e vales cobertos de bosques, poluiu a água, deformou o habitat da terra, tornou o ar irrespirável, perturbou os sistemas hidro-geológicos e atmosféricos, desertificou espaços verdejantes, levou a cabo formas de industrialização selvagem, humilhando para usar uma imagem de Dante Alighieri (cf. Paraíso, XXII, 151) o 'canteiro' que é a terra, nossa morada [S. João Paulo II. Audiência Geral de 17/01/2001]. 

Finalmente: 

...é preciso estimular e apoiar a 'conversão ecológica', que nestes últimos decénios tornou a humanidade mais sensível aos confrontos da catástrofe para a qual estava a caminhar. O homem não é mais 'ministro' do Criador. Mas, como déspota autônomo, está a compreender que finalmente tem de parar diante do abismo [S. João Paulo II. Audiência Geral de 17/01/2001]. 

Após a morte daquele Papa, assumiu Bento XVI, que também se manteve em linha de coerência com o pensamento de seus antecessores. Aliás, até o reinado de Papa Francisco, Bento XVI era referido em muitos ambientes do ativismo ambiental como o Papa mais verde da História. É possível encontrar, em sucessivas matérias de sites especializados na matéria, alusões positivas á figura do Papa Emérito, quando se trata da questão ambiental: 

Não foi só nas pregações que Joseph Ratzinger se uniu à sustentabilidade – o papa conseguiu tornar a sede da Igreja livre de emissões de carbono e ordenou a instalação de sistemas de energia fotovoltaica, transformando o Vaticano no Estado mais verde do mundo. Até o Papamóvel entrou na onda ecologicamente correta – o carro do papa emérito era híbrido e seguido por batedores que conduziam dois veículos elétricos. Durante seu exercício, Ratzinger organizou um encontro científico para abordar o aquecimento global e as mudanças climáticas. Além disso, o líder católico publicou 'O Meio Ambiente', livro que aborda os desafios da preservação ambiental [confira mais aqui]. 

De fato, existem tantas falas e tantos gestos concretos de Bento XVI com relação à questão ambiental que não é possível enumerar tudo sem alongar demais a postagem. Em sua Encíclica Caritas in Veritate, de 2009, o Papa dedica todo o capítulo V à questão do meio-ambiente, procurando delinear os critérios válidos para uma correta relação entre o homem, a natureza e o Criador comum a ambos: 

O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências — materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação. Se falta esta perspectiva, o homem acaba por considerar a natureza um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus [Bento XVI. Carta Encíclica Caritas in Veritate, nº 48]. 

Bento XVI prossegue por um longo período abordando as questões ambientais de seu tempo. O texto é longo e tudo nele é tão precioso que não me animo de transcrever mais trechos aqui, pois considero que tudo é indispensável. Convido o leitor a ler com atenção todo o capítulo V da Encíclica [Acesse a Encíclica aqui]. E poderia ainda enumerar aqui outros muitos textos, homilias, cartas apostólicas de Bento XVI, onde é abordada não somente a questão ambiental, mas também a questão indígena. Há uma carta dirigida ao Arcebispo de Medellín, por exemplo, onde são tratados todos estes temas, que posteriormente foram apenas desenvolvidos por Francisco. Ali o Papa Emérito já tratava da necessidade de respeitar a cultura dos povos americanos naquilo que não fere explicitamente a fé católica, entre outros temas que sempre fizeram parte do pensamento e da prática da Igreja, e que devem ser objeto de tratativa em postagem específica. 



IV - CONCLUSÃO 

De tudo isso, podemos concluir, com relação ao que fez Papa Francisco em Laudato Sí, ao menos quanto ao tema abordado (a forma como foi abordado deve ser discutida separadamente), que não somente não existe tanta novidade como muitos querem fazer parecer, como, ao contrário, há grande continuidade entre a obra do atual Papa e o Magistério anterior, ao menos quando considerado em seu sentido mais amplo. 

A questão ambiental já chama a atenção da Igreja de forma manifesta ao menos desde a década de 1970 com o Papa S. Paulo VI, que, seguindo o costume dos outros Papas ao escreverem documentos relacionados à doutrina social da Igreja, apenas acompanham o surgimento destas questões no seio da sociedade civil. São Paulo VI registrou o seu surgimento, São João Paulo II iniciou as tratativas sobre o tema, Bento XVI tomou várias medidas concretas a este respeito e dedicou um capítulo inteiro de uma Encíclica a este assunto. Vista a questão dentro deste olhar mais amplo, Papa Francisco apenas deu o próximo passo em um processo que sequer foi iniciado por ele, mas no qual o Pontífice se coloca como herdeiro de um legado recebido. 

Com isto não entramos, é verdade, no conteúdo da Encíclica, que merece uma análise em separado. Entretanto, apenas saber que estamos trilhando um caminho que já vem sendo pavimentado pelos Papas anteriores deve nos ajudar a vencer alguma resistência a respeito do tema e nos lançarmos com maior interesse sobre a matéria. Afinal, se os Papas em sucessão julgam o tema progressivamente mais importante, é sinal de que também nós precisamos nos atentar com crescente atenção e dedicação a esta matéria, como filhos que somos daquele que ocupa o trono de São Pedro.