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quarta-feira, 10 de julho de 2013

Sacerdotalis caelibatus




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Ontem, tive a felicidade imensa de encontrar uma velha amiga, na volta para casa. Não tão feliz porque esse é o tipo de encontro que acontece em uma parada de ônibus lotada de pessoas, esperando ônibus igualmente lotados, etc, mas feliz, em todo caso.

Conversa vai, conversa vem, eis que a elegante senhorita - uma moça além de tudo criativa, inteligente e batalhadora -, me questiona acerca do celibato sacerdotal católico. Como funciona, por quê existe? O que você pensa sobre a questão? O Papa Francisco vai acabar com ele? Ele ainda faz sentido, se é que algum dia chegou a fazer?

Claro que estes não foram os termos exatos, mas o sentido dos questionamentos pode, espero, se satisfatoriamente sintetizado nos quesitos acima.

Comecei, pois, a responder àquelas perguntas, mas, haja vista que não foi possível terminar na hora, achei por bem fazer um (ou alguns, como está me parecendo mais provável agora) post para falar um pouco sobre a questão. Digo "um pouco", mas alerto desde logo que o post é extenso. Quem não se interessar pelo assunto, talvez seja melhor que não se aventure. Pode ser que não consiga terminar de ler.

E digo "um pouco", também, porque o assunto é tão profundo e extenso, que não se pode informar sobre ele razoavelmente em um único post. A não ser que não fosse um post, mas um livro virtual, o que me parece, e certamente a ti também parecerá igualmente, leitor, inadequado.

Feitas estas considerações, eis como está organizado o texto, ou a possível sequência de textos que poderei fazer sobre o tema, se Deus e a preguiça me permitirem: não responderei às perguntas diretamente, mas trarei informação documental (vícios do método científico) e tecerei, oportunamente, comentários e esclarecimentos. Resta ao leitor, no fim, decidir se concorda ou não com o que tiver sido apresentado.

Espero, ao fim desse imenso esforço (esse post está sendo extremamente trabalhoso), pelo menos introduzir a questão, para, se for o caso, proceder posteriormente a reflexões mais específicas e profundas sobre o tema.

Iniciemos com trechos selecionados da carta de João Paulo II aos sacerdotes, 1979, aproveitando que o mesmo está prestes a ser declarado Santo, e portanto está em voga no mundo católico:



"No início do meu novo ministério na Igreja, sinto a profunda necessidade de me dirigir a vós, a todos vós sem exceção, Sacerdotes, quer diocesanos quer religiosos, que sois meus irmãos em virtude do sacramento da Ordem.

Em primeiro lugar, desejo exprimir a minha fé na vocação, que vos une aos vossos Bispos, em particular comunhão de sacramento e de ministério, mediante a qual se edifica a Igreja, Corpo Místico de Cristo."

[Comentário do autor: o então Papa chama o sacerdócio católico de "vocação", que quer dizer chamado. Na visão católica das coisas, o sacerdócio não é iniciativa do homem, mas mera resposta deste a Deus. Portanto, o sacerdócio católico é, para nós, resultado de uma vontade do próprio Deus, e não nossa. Além disso, João Paulo II se refere aos sacerdotes como seus "irmãos" no sacramento da Ordem.

Claro que todos, cristãos, somos irmãos em Cristo Jesus. A irmandade de que se fala aqui é diferente, mais no sentido de fraternidade. 

Os sacerdotes, seja diocesanos, seja religiosos, constituem verdadeiras famílias entre si, no sentido de que se apóiam e edificam mutuamente por meio de laços de convivência e afinidade, tal qual uma família comum, em sentido estreito, de laços mais imediatos.]

(...) O Sacerdócio do qual participamos através do sacramento da Ordem, que ficou "impresso" para sempre nas nossas almas, mediante um sinal particular de Deus, isto e, o "carácter",permanece em relação explícita com o sacerdócio comum dos fiéis, ou seja, o de todos os batizados.

[Comentário do Autor: o sacerdócio católico, como deixa claro João Paulo neste trecho, possui caráter indelével, tal qual o batismo cristão. O que isto quer dizer? Que este sacramento, assim como o batismo, deixa uma marca espiritual que nunca será eliminada. Um batizado continua a ser batizado ainda mesmo que termine a eternidade no inferno, e o mesmo se aplica ao sacerdote.

Claro que é uma explicação apressada, que talvez levante mais questões do que esclareça propriamente alguma coisa. Desculpo-me com o argumento de que não podemos nos arriscar a perder o objeto do texto.]

Mas, ao mesmo tempo, difere dele "essencialmente e não apenas em grau". Assim se revestem de significado pleno as palavras do autor da Epístola aos Hebreus sobre o sacerdote: "sendo escolhido de entre os homens, é constituído em benefício dos homens".

Chegados a este ponto, é melhor relermos, uma vez mais, o clássico texto conciliar que exprime as verdades fundamentais sobre a nossa vocação na Igreja:

'Cristo Nosso Senhor, Pontífice escolhido de entre os homens (cf. Hebr. 5, 1-5), fez do novo povo um ‘reino e sacerdotes para seu Deus e Pai’ (Apoc. 1, 6; cf. 5, 9-10). Na verdade, os baptizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para formarem um templo espiritual e um sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam sacrifícios espirituais e tornem conhecidos os prodígios daquele que das trevas os chamou para a sua admirável luz (cf. 1 Pdr. 2, 4-10).

Por isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cf. Act. 2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas e agradáveis a Deus (cf. Rom. 12, 1), dêem testemunho de Cristo em toda a parte e, àqueles que Iha pedirem, dêem razão da esperança da vida eterna que neles habita (cf. 1 Pdr. 3, 15).'

[Comentário do Autor: aqui João Paulo II nos apresenta, de forma breve, o que a Igreja postula, também de forma breve, a respeito da vocação do cristão, puxando a sardinha mais para o lado da questão sacerdotal.

Faz isso não para dizer que isto é obrigação exclusiva do clero, nem para criar uma categoria, um "clero em separado", como dizem alguns, mas o fim aqui é diverso, é estabelecer gradações no seguimento a estas leis. Claro que todos são forçados a cumprir os preceitos bíblicos.

O sacerdote, porém, por opção própria, deverá fazê-lo da forma mais radical e perfeita possível. Sobre ele paira um peso a mais, porque ele se coloca á frente, como exemplo. E isto para não entrarmos em outros detalhes, ainda.]

(...) O Sacerdócio exige particular integridade de vida e de serviço; tal integridade condiz muito bem com a nossa identidade sacerdotal. Nela se exprime a grandeza da nossa dignidade e a "disponibilidade" que lhe é própria: a prontidão humilde para aceitar os dons do Espírito Santo e distribuir aos outros os frutos do amor e da paz, a prontidão para lhes proporcionar aquela certeza da fé donde nasce a compreensão profunda do sentido da existência humana e a capacidade de introduzir a ordem moral na vida dos indivíduos e dos ambientes humanos(...).



Em virtude do carácter sacerdotal, participais do carisma pastoral, sinal de peculiar semelhança com Cristo Bom Pastor. Sois dotados desta característica de maneira absolutamente especial.

[Comentário do Autor: para fins do Sacramento da Ordem, Cristo é apresentado como a soma plena de três naturezas distintas, conforme ele fala sobre Si mesmo nos Evangelhos: Cristo Servo, Cristo Bom Pastor e Cristo Rei.

Cada ordem do clero católico é chamada a se inspirar em uma destas dimensões do Cristo. Em todas, na verdade, mas em uma por excelência. Observação a princípio pedante, mas nunca se sabe quando alguém terá dificuldades em interpretar o texto, ou estará imbuído de má-fé, mesmo. Não custa se precaver.

O Bispo e o Padre, respectivamente Cristo Rei e Cristo Bom Pastor, não se casam.]

***

Continuando a análise da Carta, e também da questão. Agora João Paul II começa a se debruçar sobre o problema do celibato em si, e também, claro das objeções que a ele são levantadas:


"(...) O que podemos é apenas tentar compreender mais profundamente este problema e responder-lhe de modo mais amadurecido. Poderemos assim libertar-nos quer das objecções que sempre – como sucede ainda hoje – se têm levantado contra o celibato sacerdotal, quer das interpretações que se atêm a critérios estranhos ao Evangelho, à Tradição e ao Magistério da Igreja; critérios estes, acrescentemos, cuja exactidão e fundamentação "antropológica" se revelam muito duvidosas e de valor relativo (...).

Jesus Cristo, depois de ter apresentado aos discípulos a questão da renúncia ao matrimônio "por amor do reino dos Céus", não acrescentou porventura estas significativas palavras – "quem puder compreender, compreenda"?

[Comentário do Autor: recomendo fortemente a leitura desse texto bíblico para melhor compreensão do tema. Geralmente transcrevo, eu sei. Não o faço dessa vez porque o texto está realmente muito grande. É fácil encontrar uma bíblia em casa, mas uma carta de JP II é mais difícil, não?]

A Igreja Latina quis e continua a querer, baseando-se no exemplo do próprio Cristo Senhor, no ensinamento apostólico e em toda a tradição, que todos aqueles que recebem o sacramento da Ordem abracem também esta renúncia por amor do reino dos Céus. (...) Todos estamos conscientes de que "trazemos este tesouro em vasos de barro, mas sabemos também perfeitamente que é um "tesouro".

(...) O Sacerdote, mediante o celibato, torna-se um homem "para os outros", de maneira diversa de como se torna tal aquele que, ligando se em unidade conjugal com a mulher, se torna também ele, enquanto esposo e pai, homem "para os outros" sobretudo no âmbito da própria família: para a esposa, e juntamente com ela para os filhos, aos quais dá a vida.



O Sacerdote, ao renunciar à paternidade própria dos esposos, procura outra paternidade, e realmente como que outra maternidade, se recordamos as palavras do Apóstolo acerca dos filhos que ele gera com o sofrimento. 

Esses são filhos do seu espírito, homens confiados pelo Bom Pastor à sua solicitude. E são muito mais numerosos do que quantos possa abranger uma família humana(...).

Fruto de equívoco – se não mesmo de má fé – é a opinião, com frequência difundida, de que o celibato sacerdotal na Igreja Católica é apenas uma instituição imposta por lei àqueles que recebem o sacramento da Ordem.

Ora, todos sabemos que não é assim. Todo o cristão que recebe o sacramento da Ordem compromete-se ao celibato com plena consciência e liberdade , depois de preparação de vários anos, profunda reflexão e assídua oração. Toma essa decisão de vida em celibato, só depois de ter chegado à firme convicção de que Cristo lhe concede esse "dom", para bem da Igreja e para serviço dos outros. Só então se compromete a observá-lo por toda a vida.

[Comentário do Autor: este ponto é realmente fundamental. Muito mais que imposição ou renúncia ou castigo ou qualquer outra coisa nesse sentido, a Igreja Católica considera o celibato um DOM. Uma dádiva de Deus, uma presente que ELE concede à Igreja para a sua santificação.

O que não quer dizer de modo algum que a Igreja despreza o matrimônio ou o relega a segundo plano. Ambas as vocações, o matrimônio - que propositalmente estou diferenciando, nesse texto, do casamento civil -, e a Ordem, são comemoradas pela Igreja, que vê ambas queridas e planejadas pelo próprio Deus.

Finalmente, ressalte-se aqui, apenas para esclarecer o texto da carta que vem a seguir, que a Igreja não obriga ninguém a ser padre, irmão ou freira. Todos aqueles que ingressam neste caminho o fazem porque querem - em um contexto ideal -, conscientes do que isso significa.

Da mesma forma, aquele que contrai matrimônio sabe que está renunciando a todas as outras mulheres ou homens do universo em prol de apenas uma pessoa. Ninguém obriga alguém a se casar - obriga sim que eu sei, concedo -, mas aquele que se casa religiosamente deve fazê-lo ciente das consequências.

Do contrário, o problema definitivamente não está no instituto, seja da Ordem seja do Matrimônio, mas na infidelidade das pessoas, em sua incapacidade de honrar os votos que elas mesmas, de livre vontade, fazem. Depois é fácil, e até conveniente reclamar, não?]

(...) E Isto manifesta-se com toda a clareza quando manter a palavra dada a Cristo, por compromisso celibatário consciente e livre para toda a vida, encontra dificuldades, é posto à prova, ou então exposto à tentação. São coisas que não poupam o Sacerdote, como não poupam aliás qualquer outro homem e cristão.

***


Agora que já fomos apresentados a algumas noções introdutórias sobre o assunto - nas quais, inclusive, já deixei escapar algumas considerações mais pessoas -, podemos nos debruçar sobre um documento da Igreja que trata exclusivamente sobre o tema.

Trata-se da Encíclica Sacerdotalis caelibatus - sobre o celibato sacerdotal, do Papa Paulo VI. Esse documento papal foi escrito exatamente em uma época onde o celibato era mais duramente atacado pelos modernistas de plantão (veja, não é moderno, é modernista, algo pejorativo, mesmo, porque isto, no vocabulário católico, é sinônimo de herege):

"O celibato sacerdotal, que a Igreja guarda desde há séculos como brilhante pedra preciosa, conserva todo o seu valor mesmo nos nossos tempos, caracterizados por transformação profunda na mentalidade e nas estruturas.

Mas no clima atual de novos fermentos, manifestou-se também a tendência, e até a vontade expressa, de pedir à Igreja que torne a examinar esta sua instituição característica, cuja observância, segundo alguns, se tornou problemática e quase impossível no nosso tempo e no nosso mundo (...).

Consideremos honestamente as principais objeções contra a lei do celibato eclesiástico unido ao sacerdócio. A primeira provém, ao que parece, da fonte mais autorizada, o Novo Testamento, no qual se conserva a doutrina de Cristo e dos Apóstolos. 

O Novo Testamento não exige o celibato dos ministros sagrados, mas propõe-no simplesmente como obediência livre a uma vocação especial ou a um carisma particular (cf. Mt 19, 11-12). Jesus não impôs esta condição ao escolher os Doze, como também os Apóstolos não a impuseram àqueles que iam colocando à frente das primeiras comunidades cristãs (cf.1 Tm 3, 2-5; Tt 1, 5-6).

(...) Uma  [outra] dificuldade, que muitos notam, consiste em fazer-se coincidir, na disciplina vigente do celibato, o carisma da vocação sacerdotal com o da perfeita castidade, considerada como estado de vida próprio do ministro de Deus. E por isso perguntam se é justo afastar do sacerdócio aqueles que parecem ter vocação ministerial, sem terem vocação de vida celibatária (...).

Manter o celibato sacerdotal na Igreja muito prejudicaria, além disso, as regiões onde a escassez numérica do clero, reconhecida e lamentada pelo Concílio, provoca situações dramáticas, dificultando a plena realização do plano divino de salvação e pondo às vezes em perigo até mesmo a possibilidade do primeiro anúncio evangélico. De fato, a preocupante rarefação do clero é atribuída por alguns ao peso da obrigação do celibato.

Nem faltam pessoas convencidas de que o sacerdócio no matrimônio não só tiraria a ocasião de infidelidades, desordens e defecções dolorosas, que ferem e magoam a Igreja inteira, mas consentiria aos ministros de Cristo mais completo testemunho de vida cristã, mesmo no campo da família, campo que lhes está vedado pelo estado atual em que vivem.



Há ainda quem insista em afirmar que o sacerdote se encontra, em virtude do celibato, numa situação física e psicológica artificial nociva ao equilíbrio e manutenção da sua personalidade humana. 

Acontece, segundo dizem, que muitas vezes o sacerdote se torna insensível, falto de calor humano e de plena comunhão de vida e destino com o resto dos seus irmãos, vendo-se obrigado a uma solidão que é fonte de amargura e aviltamento.

Não indicará tudo isto violência injusta e desprezo injustificável dos valores humanos, derivados da obra divina da criação e integrados na obra da redenção realizada por Cristo?

(...) Este coro de objeções parece que sufoca a voz secular e solene dos Pastores da Igreja, dos mestres de espírito, do testemunho vivido duma legião sem número de santos e de fiéis ministros de Deus, que fizeram do celibato objeto interior e sinal exterior da sua alegre e total doação ao mistério de Cristo. 

Não, esta voz é ainda forte e serena; não vem só do passado, vem do presente também. Constantemente atento como estamos a observar a realidade, não podemos fechar os olhos a este fato magnífico e surpreendente: na santa Igreja de Deus, em todas as partes do mundo onde ela levantou felizmente as suas tendas, ainda hoje há inumeráveis ministros sagrados - subdiáconos, diáconos, presbíteros e bispos - que vivem de modo ilibado o celibato voluntário e consagrado.

E, ao lado destes, não podemos deixar de notar as falanges imensas de religiosos, religiosas, e também de jovens e leigos, todos fiéis ao compromisso da perfeita castidade: vivem-na, não por desprezo do dom divino da vida, mas por amor superior à vida nova que brota do mistério pascal; vivem-na com austeridade corajosa, com religiosidade alegre, dum modo exemplar e íntegro, e mesmo com relativa facilidade.

Este grandioso fenômeno prova a realidade singular do reino de Deus, vivo no seio da sociedade moderna, à qual presta o humilde e benéfico serviço de "luz do mundo" e de "sal da terra" (cf. Mt 5, 13-14). Não podemos calar a nossa admiração: neste fenômeno, sopra indubitavelmente o Espírito de Cristo.

(...) O sacerdócio cristão, que é novo, só pode ser compreendido à luz da novidade de Cristo, Pontífice máximo e Sacerdote eterno, que instituiu o sacerdócio ministerial como participação do seu sacerdócio único. Portanto o ministro de Cristo e administrador dos mistérios de Deus (1 Cor 4, 1), encontra também nele o modelo direto e o ideal supremo (cf. 1 Cor 11, 1). 

O Senhor Jesus Cristo, Unigênito de Deus, enviado ao mundo pelo Pai, fez-se homem para que a humanidade sujeita ao pecado e à morte, fosse regenerada e, por meio dum nascimento novo (Jo3, 5; Tt 3, 5), entrasse no reino dos céus. Consagrando-se inteiramente à vontade do Pai (Jo 4,34; 17, 4), Jesus realizou, por meio do seu mistério pascal, esta nova criação (2 Cor 5, 17; Gl 6, 15), introduzindo no tempo e no mundo uma forma de vida, sublime e divina, que transforma a condição terrena da humanidade (cf. Gl 3, 28).

 (...) Cristo, Filho único de Deus, está constituído, em virtude da sua mesma encarnação, Mediador entre o céu e a terra, entre o Pai e o gênero humano. Em plena harmonia com esta missão, Cristo manteve-se toda a vida no estado de virgindade, o que significa a sua dedicação total ao serviço de Deus e dos homens.

Este nexo profundo em Cristo, entre virgindade e sacerdócio, reflete-se também naqueles que têm a sorte de participar da dignidade e da missão do Mediador e Sacerdote eterno, e essa participação será tanto mais perfeita quanto o ministro sagrado estiver mais livre dos vínculos da carne e do sangue.

É portanto o mistério da novidade de Cristo, de tudo o que Ele é e significa, é a soma dos mais altos ideais do evangelho e do reino, é uma manifestação particular da graça, que brota do mistério pascal do Redentor, e torna desejável e digna a escolha da virgindade por parte dos que foram chamados pelo Senhor Jesus, não só a participarem do seu ministério sacerdotal, mas a compartilharem com Ele o seu mesmo estado de vida.

A correspondência à vocação divina é resposta de amor ao amor que Jesus Cristo nos mostrou de maneira sublime (cf. Jo 3, 16; 15, 13); é resposta coberta de mistério no amor particular pelas almas a quem Ele fez sentir os apelos mais instantes (cf. Mc 10, 21).

A graça multiplica, com força divina, as exigências do amor; este, quando autêntico, é total, exclusivo, estável e perene, e estímulo irresistível que leva a todos os heroísmos. Por isso, a escolha do celibato consagrado foi sempre considerada pela Igreja "como sinal e estímulo da caridade": sinal de amor sem reservas, estímulo de caridade que a todos abraça. 

Numa vida de entrega tão inteira, feita pelos motivos que expusemos, quem poderá reconhecer sinais de pobreza espiritual ou de egoísmo, sendo ela e devendo ser, pelo contrário, exemplo raro e excepcionalmente expressivo duma vida impulsionada e fortalecida pelo amor, no qual o homem exprime a grandeza que é exclusivamente sua? 



Quem poderá duvidar da plenitude moral e espiritual duma vida, assim consagrada não a qualquer ideal, por mais nobre que seja, mas a Cristo e à sua obra em favor duma humanidade nova, em todos os lugares e em todos os tempos?

"Conquistado por Cristo Jesus" (Fl 3,12) até ao abandono total de si mesmo a Ele, o sacerdote configura-se mais perfeitamente a Cristo, também no amor com que o eterno Sacerdote amou a Igreja seu Corpo, oferecendo-se inteiramente por ela, para a tornar Esposa sua, gloriosa, santa e imaculada (cf. Ef 5, 25-27).

A virgindade consagrada dos sacerdotes manifesta, de fato, o amor virginal de Cristo para com a Igreja e a fecundidade virginal e sobrenatural desta união em que os filhos de Deus não são gerados pela carne e pelo sangue (Jo 1, 13). 

(...) E tudo o mais da vida do sacerdote, adquire maior plenitude de significado e de eficácia santificadora. Com efeito, o seu compromisso especial de santificação encontra novos incentivos no ministério da graça e no da eucaristia, "em que está encerrado todo o bem da Igreja": operando em nome de Cristo, o sacerdote une-se mais intimamente à oferta, colocando sobre o altar a sua vida inteira, marcada com sinais de holocausto.

(...) O nosso Senhor e Mestre disse que "na ressurreição, nem eles se casam, e nem elas se dão em casamento, mas são todos como anjos no céu" (Mt 22,30). No mundo do homem, tão absorvido nos cuidados terrenos e dominado muitas vezes pelos desejos da carne (cf.1 Jo 2,16), o precioso dom divino da continência perfeita, por amor do reino dos céus, constitui exatamente "um sinal particular dos bens celestes", anuncia a presença na terra dos últimos tempos da salvação (cf.1 Cor 7,29-31) com o advento dum mundo nova, e antecipa, de alguma maneira, a consumação do reino, armando os valores supremos do mesmo, que um dia hão de brilhar em todos os filhos de Deus.

É, por isso, testemunho da tensão necessária do Povo de Deus orientada para a meta última da peregrinação terrestre e é incitamento para todos erguerem o olhar às coisas do alto, onde o Senhor está sentado à direita do Pai e onde a nossa vida está escondida com Cristo em Deus, até se manifestar na glória (cf. Cl 3,1-4).

[Comentário do Autor: alguém poderá, então, falar da questão da pedofilia, por exemplo, problema grave, do qual a encíclica não trata porque, justiça seja feita, à época em que foi escrita essas tristes histórias ainda não tinham vindo à tona. Ainda se escondia muito, mais do que hoje.

Isto, porém, deve ser tratado de forma mais específica em outro post. Não estou fugindo do problema, sério. Apenas não quero alongar demais o texto ou perder o objeto da discussão.]

(...) Não se pode acreditar sem reservas que, abolido o celibato eclesiástico, as vocações sacerdotais cresceriam por isso mesmo e de forma considerável: a experiência contemporânea das Igrejas e das comunidades eclesiais que permitem o matrimônio aos seus ministros, parece depor em contrário.

A rarefação das vocações sacerdotais deve ser procurada principalmente noutras causas: por exemplo, na perda ou na diminuição do sentido de Deus e do que é sacro nos indivíduos e nas famílias, e na perda da estima pela Igreja como instituição de salvação mediante a fé e os sacramentos. O problema tem portanto que ser estudado na sua verdadeira raiz.

(...) Depois do que a ciência deu como certo, não é justo repetir ainda (cf. n.10) que o celibato vai contra a natureza, por se opor a legítimas exigências físicas, psicológicas e afetivas, cuja satisfação seria necessária para a completa realização e maturidade da pessoa humana.



O homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27), não é somente carne, e o instinto sexual não é tudo nele. O homem é também e sobretudo inteligência, vontade, liberdade e, graças a estas faculdades, é e deve ter-se como superior ao universo: elas tornam-no senhor dos próprios apetites físicos, psicológicos e afetivos.

A verdadeira e profunda razão do celibato é, como já dissemos, a escolha duma relação pessoal mais íntima e completa com o mistério de Cristo e da Igreja, em prol da humanidade inteira. Nesta escolha há lugar, sem dúvida, para a expressão dos valores supremos e humanos no grau mais elevado.

(...) É certo: o sacerdote, pelo seu celibato, é homem solitário. Mas não é solidão vazia, porque está plena de Deus e da superabundante riqueza do seu reino.

Além disso, ele preparou-se para esta solidão, que deve ser plenitude interior e exterior de caridade, escolheu-a conscientemente e não por orgulho de ser diferente dos outros, não para subtrair-se às responsabilidades comuns, não para estremar-se dos irmãos ou por desestima do mundo.

 Segregado do mundo, o sacerdote não está separado do Povo de Deus, porque foi constituído em favor dos homens (Hb 5,1), consagrado totalmente ao serviço da caridade (cf. 1 Cor 14,4ss) e à obra para que o Senhor o chamou.

(...) Por vezes a solidão pesará dolorosamente sobre o sacerdote, mas nem por isso há de arrepender-se de tê-la generosamente escolhido. Também Cristo, nas horas mais trágicas da vida, ficou só, abandonado mesmo daqueles que tinha escolhido para testemunhas e companheiros e que Ele tinha amado até ao fim (Jo 13,1), mas declarou: "Eu não estou só, porque o Pai está comigo" (Jo 16,32).

Quem escolheu ser todo de Cristo há de encontrar, antes de tudo, na intimidade com Ele e na sua graça, a força de ânimo necessária para dissipar a melancolia e para vencer os desânimos.

Não lhe faltará a proteção da Virgem Mãe de Jesus e os maternos desvelos da Igreja a cujo serviço se consagrou. Poderá contar com a solicitude do seu pai em Cristo, o Bispo, com a fraternidade íntima dos irmãos no sacerdócio e com o conforto de todo o Povo de Deus.

E se a hostilidade, a desconfiança, a indiferença dos homens lhe tornarem por vezes demasiado amarga a solidão, há de saber compartilhar com dramática evidência a mesma sorte de Cristo, como o apóstolo que não é maior do que Aquele que o enviou (cf. Jo 13,16;15,18), como o amigo que foi admitido aos segredos mais dolentes e mais gloriosos do divino Amigo que o escolheu para produzir, num viver aparentemente de morte, frutos misteriosos de vida (cf. Jo 15,15-16.20).

***
Bom, leitores. Com isto eu encerro, por aqui, este post. Sei que ele esclarece muitas coisas ao mesmo tempo que levanta muitas outras dúvidas. Espero que possa ter despertado em muitos uma saudável curiosidade, que frutificar em estudos, ou ao menos em mais questionamentos que possam me instruir em escritos futuros.

Quero ressaltar, finalmente, que me omiti, aqui, de fazer uma análise histórica mais profunda. Na verdade o esboço trazia algo nesse sentido, mas suprimi ao final. Penso, também, que isto deve ser tratado em texto específico.

Encerro com uma  Oração indulgenciada por S. Pio X em 03/03/1905, que se oferece a Deus pedindo pelos sacerdotes. Ela é tão bonita quanto instrutiva. Se aprende muito sobre o catolicismo lendo essas orações.

"Ó Jesus, Pontífice Eterno, Divino Sacrificador, Vós que, no Vosso incomparável amor, deixastes sair do Vosso Sagrado Coração o sacerdócio cristão, dignai-Vos derramar, nos Vossos sacerdotes, as ondas vivificantes do Amor infinito.

Vivei neles, transformai-os em Vós, tornai-os, pela Vossa graça, instrumentos de Vossas Misericórdias.

Atuai neles e por eles, e fazei que, revestidos inteiramente de Vós pela fiel imitação de Vossas adoráveis virtudes, operem, em Vosso nome e pela força de Vosso espírito, as obras que Vós mesmo realizastes para a salvação do mundo.

Divino Redentor das almas, vede como é grande a multidão dos que dormem ainda nas trevas do erro; contai o número dessas ovelhas infiéis que ladeiam os precipícios; considerai a multidão dos pobres, dos famintos, dos ignorantes e dos fracos que gemem ao abandono.

Voltai para nós por intermédio dos Vossos sacerdotes. Revivei neles; atuai por eles, e passai de novo através do mundo, ensinando, perdoando, consolando, sacrificando, e reatando os laços sagrados do amor entre o Coração de Deus e o coração humano."

Amém.


"O zelo por tua casa me consome e as afrontas com que Te afrontam recaem sobre mim."

Salmo 69, versículo 10.

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