Em minha cidade, que é uma das grandes metrópoles do Brasil, é comum vermos pessoas reclamando dos estrangeiros, dos imigrantes que aparecem "vindos sabe-se lá de onde" e então "tomam os postos de trabalho da população local".
É comum ouvirmos dizer que essas pessoas "deveriam voltar para o lugar de onde vieram", isso quando estamos diante de alguém apenas levemente extremista nesse aspecto. Se a conversa for com alguém da extrema-direita (tal qual a idealiza o professor Olavo de Carvalho), os termos serão ainda menos elegantes.
Nunca é demais lembrar, desde já, que esse é o tipo de discurso que faz ascender ao poder figuras como Mussolini, Hitler e mesmo, ainda que pela via indireta, Fidel Castro e outros extremistas.
O estrangeiro sempre aparece como um inimigo, como uma ameaça, pronto para "contaminar" a cultura, a tradição e os bons costumes da pátria que "tão generosamente os acolhe". Eu, pelo menos, dispenso uma generosidade dessas, e o estrangeiro certamente o faria, se pudesse.
Vejam, em momento algum estou dizendo que o estrangeiro seja um elemento acima de qualquer suspeita, acima do bem e do mal, o próprio Cristo encarnado vindo nos visitar. Em muitos casos, de fato, ele o é. Em muitos casos, igualmente, não o é. Mas uma postura de hostilidade prima facie não é nem de longe a opção mais cristã.
É preciso, verdeiramente, portanto, se perguntar até que ponto essas práticas são - ou melhor, não são - cristãs ou mesmo humanas, dignas de um ser humano, independente de ser ele cristão ou não. Tentemos fazer isso de maneira rápida.
Em primeiro lugar, é preciso estar atento ao discurso tão oportuno do Papa Francisco, que vem valorizando tanto essa questão da indiferença ao tema dos imigrantes, mesmo por parte de tantos que se dizem cristãos.
Como disse Sua Santidade em mais de uma ocasião, realmente, em muitos casos realmente impera, senão a hostilidade, ao menos a indiferença. Esquecemos os imigrantes, como se realmente fossem apenas estatísticas.
Muitas vezes esquecemos que estamos lidando com pessoas muitas vezes fugindo de um país que amam, mas que não é capaz de lhes prover o mínimo que merecem enquanto seres humanos pelos quais Nosso Senhor Jesus Cristo derramou Seu Preciosíssimo Sangue.
Nesse sentido, acho que seria muito adequado nos debruçarmos um pouco sobre as palavras do próprio Senhor a respeito desse tema:
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus, Capítulo 25, versículos de 33 a 46:
..."E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; ERA ESTRANGEIRO, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.
Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber?
E QUANDO TE VIMOS ESTRANGEIRO, E TE HOSPEDAMOS? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?
E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;
Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; SENDO ESTRANGEIRO, NÃO ME RECOLHESTES; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.
Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, OU ESTRANGEIRO, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos?
Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, todas as vezes que não o fizestes a um destes pequeninos, FOI A MIM QUE NÃO O FIZESTES.
E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna."
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Sem dúvida uma passagem muito reveladora, que nos começa a revelar, já de forma bem clara, qual deve ser a postura do verdadeiro cristão para com o estrangeiro.
Jesus Cristo é muito enfático nesse aspecto, e claramente condiciona a prometida salvação ao acolhimento sincero, por parte de nós, cristãos, a diversos categorias, entre as quais o estrangeiro figura expressamente.
E isto não é uma invenção de Jesus Cristo, somente. O filho de Deus não acordou um belo dia e disse: "VOU REVOLUCIONAR". Nada disso.
Mesmo antes da doutrina cristã, o judaísmo também possuía traços fortes de bons modos no trato aos que não são da pátria, e não podemos jamais nos esquecer que Jesus, considerado enquanto ser humano, era judeu, e portanto estrangeiro a mim, e muito provavelmente a você também.
Vejamos um pouco da Torá:
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"Quando também fizerdes a colheita da vossa terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua sega.
Semelhantemente não rabiscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre E AO ESTRANGEIRO. Eu sou o Senhor vosso Deus."
Livro do Levítico, Capítulo 19, versículos 9 e 10.
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Podemos ainda perceber a preocupação com a temática em momentos posteriores da história do povo da Antiga Aliança:
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"O Senhor protege o estrangeiro, e sustém o órfão e a viúva, mas frustra o propósito dos ímpios."
Salmo 146, versículo 9.
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Saiamos agora um pouco da recorrência às Escrituras. O próximo elemento de convencimento que coleciono, como católico, é um documento recolhido de nossa Sagrada Tradição. Vamos dar uma olhada em um trecho pertinente ao tema:
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"Os cristãos não se distinguem das outras pessoas nem pela pátria, nem pela língua, nem por um género de vida especial; seguem os costumes da terra, quer no modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer noutros usos; mas a sua maneira de viver é sempre admirável aos olhos de todos.
Habitam a sua pátria, mas vivem como que de passagem; em tudo participam como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria.
TODA TERRA ESTRANGEIRA É SUA PÁTRIA E TODA A PÁTRIA LHES É ESTRANGEIRA. Obedecem às leis estabelecidas, mas pelo seu modo de vida superam as leis."
Epístola a Diocleto, século II, Coletânea dos Padres da Igreja.
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Aqui, quero comentar de forma, espero, oportuna. Vemos claramente que ao princípio do cristianismo a questão da pátria não era da importância que hoje muitos que se dizem cristãos atribuem.
Isto, de fato, afirmo sem medo de errar, não é cristianismo genuíno, mas nacionalismo, é uma ideologia venenosa que infelizmente se imiscuiu no meio cristão em muitos casos.
Penso que devemos ter muito cuidado para não nos deixarmos contaminar por certos pensamentos extremistas, seja da direita, seja da esquerda, que muitas vezes acabam por deturpar o real sentido das palavras de Jesus, dos Apóstolos e dos Padres da Igreja.
Com isso não quero dizer que não temos pátria, que não devemos dar importância ao nosso país, e tudo o mais. Quero apenas recordar que a verdadeira pátria do cristão não é outra que não a PÁTRIA CELESTE, e se a minha preocupação com as tantas pátrias terrestres, por mais lícita que seja, superar a preocupação com aquela, então Jesus Cristo não é verdadeiramente o centro da minha existência.
Ora, o próprio cristianismo em seu início sofreu com esses problemas nacionalistas, conquanto as Leis de Moisés impediam os judeus cristãos de se misturarem com os pagãos, com os gentios, com os estrangeiros, com os impuros.
Não admira que muitos dos cismas que a Igreja de Cristo enfrentou ao longo dos séculos tenham sido motivados por razões nacionalistas, sendo o caso mais notório o da criação da chamada Igreja Anglicana.
Quer dizer, essas pessoas estavam dando prova de que não entenderam a mensagem de Cristo. E o mesmo se faz hoje ao querer falar em termos como "igreja do Brasil", ou "igreja da Amazônia".
Igreja, Igreja, mesmo, com a graça de Deus, só existe uma, e ela não tem pátria, não tem fronteiras, porque católica, isto é, universal, para todos.
A coisa era tão grave no começo da religião de Jesus que foi preciso que São Pedro, o primeiro Papa, iluminado pelo Espírito Santo, pusesse fim à questão:
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"E, abrindo Pedro a boca, disse: Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas;
Mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo."
Livro dos Atos dos Apóstolos, Capítulo 10, versículos 34 e 35.
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Podemos ver, ao longo da história de toda a humanidade, como muitas vezes um pretenso zelo nacionalista acabou sendo ponto de apoio para inúmeros genocídios e para a legitimação de atitudes xenofóbicas muitas vezes trágicas para povos inteiros.
Nem mesmo no tempo dos profetas, nem mesmo no tempo do Salmista, se estava livre desse tipo de atitude. Hoje, também não é diferente:
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Matam a viúva E O ESTRANGEIRO, e tiram a vida ao órfão. E dizem: O Senhor não vê; o Deus de Jacó não o percebe. Atendei, ó néscios, dentre o povo; e vós, insensatos, quando haveis de ser sábios?
Aquele que fez ouvido, não ouvirá? ou aquele que formou o olho, não verá? Porventura aquele que disciplina as nações, não corrigirá? Aquele que instrui o homem no conhecimento, o Senhor, conhece os pensamentos do homem, que são vaidade.
Salmo 94, versúculos de 6 a 11
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Eu fico aqui, pois, me perguntando, o que se passa na cabeça de uma pessoa assim, que procura qualquer desculpa para não acolher o próximo, ansioso por encontrar nele qualquer diferença que permita não o amar, ou o amar menos que o da esma pátria, por exemplo, como se todos não fossem filhos do mesmo Deus.
Felizmente, isso jamais fez parte da doutrina católica, conquanto, infelizmente, muitos membros da Igreja do passado e de hoje não se apercebam disso, e queiram sequestrar a doutrina de Cristo para si, buscando justificar seus próprios costumes torpes.
Por um acaso Cristo não está presente no pobre, no excluído, no necessitado? E isto não é discurso de um liberteiro ou de um comunista, são palavras do próprio Cristo, juntadas no início deste post!
Santo Tomás de Aquino disse que "todos são filhos de Deus, ainda que por vestígio". Mesmo um não batizado traz em si algo de divino. Ou será que o relato do Gênesis, "Deus criou o homem à SUA IMAGEM E SEMELHANÇA" perdeu a validade, ou apenas se aplica a certas pessoas, e a outras não?
Todo ser humano, independente da pátria a que pertença, de alguma forma reflete a glória e a majestade de nosso Deus. Merece ser acolhido como tal, e respeitado como tal. Aqui recorro novamente a Santo Tomás de Aquino:
"Aquele que zomba da criatura, zomba do Criador".
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Finalmente, para coroar a exposição dos motivos católicos a respeito da matéria, tomemos as palavras do Catecismo:
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"As nações mais favorecidas devem acolher, na medida do possível, o estrangeiro em busca da segurança e dos recursos vitais que não pode encontrar em seu país de origem."
Os poderes públicos zelarão pelo respeito do direito natural que põe o hóspede sob a proteção daqueles que o recebem.
Em vista do bem comum de que estão encarregadas, as autoridades políticas podem subordinar o exercício do direito de imigração a diversas condições jurídicas, principalmente com respeito aos deveres dos migrantes para com o país de adoção.
O migrante é obrigado a respeitar com gratidão o patrimônio material e espiritual do país que o acolhe, a obedecer às suas leis e a dar sua contribuição financeira."
§2241 do Catecismo da Igreja Católica, edição típica vaticana.
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Em suma, para o bom católico, e para o bom cristão em geral, o estrangeiro é Cristo, merece ser acolhido, auxiliado, respeitado e amado.
E o migrante, igualmente, deve ser grato pelo acolhimento e hospitalidade que lhes sejam deferidos, respeitando as leis e costumes do local que o acolhe, e buscando dar, ele, também, a sua justa contribuição.
Podemos perceber, na linha de equilíbrio e ponderação que é característica do catolicismo, como o mesmo procura equilibrar de forma justa e cristã os dois lados da questão, não nos tornando nem escravos nem algozes do estrangeiro, mas seus colaboradores enquanto seres humanos, iguais perante o mesmo Deus e Senhor.
O que passar disso deixa de ser cristianismo e se torna mera ideologia, deixa de ser o encontro submisso com a pessoa do Salvador, e se torna apenas palanque de politicagem, ou manipulação das palavras do Filho de Deus em prol de interesses egoístas e amalucados.
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"Um só é o vosso mestre, e todos sois irmãos."
Jesus Cristo.
Glória a Jesus na Hóstia Santa. Salve Maria Santíssima!
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